Nunca fui uma pessoa normal, no sentido amplo da palavra. Acredito que sempre fiz parte do grupo dos avoados, daqueles que nunca conseguem prestar atenção num fato único, exclusivo, num contexto geral. As peculiaridades e as particularidades sempre chamaram a minha atenção, algo tão pequeno, transformava-se em grandes devaneios que me levavam para longe, mas acreditem, muito longe mesmo. Casos que hoje pensando, concluo que estava na porta da ignorância absurda do poder da imaginação. Existem dois casos que eu nunca esqueço, na verdade vários casos que não esqueço, mas agora retiro dois da caixinha de pandora mental. Ambos aconteceram com a mesma professora, na segunda série, eu deveria ter sete para oito anos, uma professora ensinava tudo. Aula de português, exercícios silábicos, era esse nome que estava na minha cartilha colorida de segunda série, como todo bom aluno deveríamos fazer esses exercícios, mas eu paralisava e fixava na voz e principalmente nos lábios da professora falando SILÁBICOS. Eu com o meu auto-grau de associações imaginava que ela estava falando de LÁBIOS, logo olhava para eles e por ai ficava imaginando tudo o que eles poderiam ter feitos até chegar ali, o acordar, chamar os filhos para ir para escola (a filha da professora era minha colega, achava o máximo saber que ela tinha o livre acesso ao meu desejo maior, entrar na intimidade da professora.) escovar os dentes e principalmente a escolha do batom para passar nos lábios, batom esse sempre muito cor da pele. Aula de matemática. Unidade, dezenas e centenas, sinceramente, eu tinha uma dificuldade em compreender o que ela queria me dizer com tudo aquilo. A aula corria normalmente, Unidade – explicações – Acredito que essa parte eu entendia. Dezenas, FUDEU. Parava ai e dava margem à imaginação, juro, que automaticamente vinha na minha cabeça a idéia e imagem de uma AZEITONA e por conseqüência imaginava a professora comendo azeitona e eu sentindo o gosto da mesma, ou seja, o meu conhecimento matemático de segunda série ficava restrito a unidade, azeitona e centena. É claro que não compreendia, por que dezena são dois números, logo, uma azeitona cortada ao meio sem caroço, um tanto quanto óbvio.
Essa distorção dos fatos acabou se tornando uma ferramenta crucial para compreender o mundo e entender que nem tudo o que eu vejo realmente é, tem cores, cheiros e gostos, que mudam completamente o foco das coisas. Essa loucura de imaginar e dar sentidos as coisas, hoje, como futuro psicólogo/psicanalista, acho encantador e engraçadinho da minha parte sobreviver dessa forma. Ficar encantando com as palavras que saem da boca das pessoas. Outro exemplo disso: são as palavras PRESUNTO e PÈ. São palavras que representam uma intimidade enorme quando se ouve. Presunto é uma palavra que aparece muito no nosso cotidiano privado, ele geralmente aparece no café da manhã ou no jantar, “Acabou o presunto?”, “Me alcança o presunto”. Algo muito íntimo do cotidiano familiar e tornar pública a palavra presunto são formas de mostrar, mesmo que de tabela, a intimidade privada. Algo extremamente desagradável para o sujeito contemporâneo, não é a toa que hoje em dia os presuntos e queijos não são mais pedidos nas gôndolas do mercado, eles se encontram embalados e distribuídos na sessão frios, onde cada um pega, em silencio o presunto e queijo que mais agrada. Existe ai a diferença, a meu ver, entre queijo e presunto, porque a relação que temos com o queijo é completamente diferente da relação que temos com o presunto. O queijo sempre apareceu sendo falado no público, aparecia nos derivados do leite, nas opções de sabores de pastéis “temos pastéis de carne, frango e queijo”, pizza de muzzarela, lembram do bumm que deu quando surgiu a pizza quatro queijos? É muito mais queijo do que massa de pizza. Existe até ditado popular com queijo “você têm a faca e o queijo na mão”. Comer pizza de queijo com presunto, só em casa, daquelas que você compra a massa, molho de tomate e coloca com o que tem em casa, ou seja, queijo, presunto e quem sabe milho. O presunto sempre foi complemento do queijo, tanto que é comum ter sabor queijo e não sabor presunto, e quando se junta os dois, a probabilidade de se colocar tomate e orégano para tornar sabor pizza é muito grande. Por essas e outras, ficaria horas justificando, a palavra presunto sempre me passou um grau e intimidade impar que não tenho com aqueles que não escuto essa palavra. O mesmo acontece com PÈ. Afinal de contas o pé do outro é sempre mais limpo, cheiroso e macio do que o seu.
Pense nisso.
Pense nisso.
